quinta-feira, 30 de julho de 2009

Encontro do dia 31 de julho de 2009 (puruṣa e prakṛti)

O texto a seguir é uma descrição recente do sistema de conhecimento (darśana) conhecido como Sāṁkhya. Trata-se de um texto nomeado como Kapila-upadeśa, ou "Ensinamento de Kapila", que é a quem se atribui a fundação dessa escola filosófica, que teve início antes da Era Cristã. Essa obra consiste de 9 capítulos que foram transmitidos junto à coletânea purânica conhecida como Bhāgavata, datada de cerca de XII d.C. 

Segundo a concepção desse tratado, que não é a visão "clássica" do Sāṁkhya, puruṣa, que é entendido como a consciência divina, aproxima-se ludicamente da prakṛti e perde a consciência de sua própria natureza. O conjunto das observações cosmológicas presentes nesse tratado pressupõem um rico universo simbólico e mitológico que nos induzem a interessantes reflexões acerca dos metas propostas pelas várias tradições do yoga e das práticas por elas envolvidas.

Do ponto de vista da relação entre as escolas filosóficas, é interessante notar também que as concepções do Sāṁkhya presentes nessa obra trazem alguma influência do tantrismo. No tantrismo, os elementos, ou "tattvas", são computados como 36 ao todo, enquanto que, no Sāṁkhya, eles somam 25. Mais do que uma divergência numérica, as diferenças estão situadas no valor, positivo ou negativo, dado aos tattvas. Enquanto que, no Sāṁkhya antigo, os tattvas identificados com a prakṛti são entendidos como alheios ao divino, no tantrismo, esses mesmos tattvas, identificados com a śakti, constituem uma manifestação do divino. Na visão do Kapilopadeśa, por vezes, os tattvas são entendidos de uma forma e, por vezes, de outra forma. Eis o início do segundo capítulo dessa obra:

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Kapilopadeśa
atha te sampravakṣyāmi tattvānāṁ lakṣaṇaṁ pṛthak | yad viditvā vimucyeta puruṣaḥ prākṛtair guṇaiḥ ||1|| jñānaṁ niḥśreyasārthāya puruṣasyātmadarśanam | yad āhur varṇaye tat te hṛdayagranthibhedanam ||2|| anādir ātmā puruṣo nirguṇa prakṛteḥ paraḥ | pratyagdhāmā svayaṁ jyotir viśvaṁ yena samanvitam ||3|| sa eṣa prakṛtiṁ sūkṣmāṁ daivīṁ guṇamayīṁ vibhuḥ | yadṛchayaivopagatām abhyapadyata līlayā ||4|| guṇair vicitrāḥ sṛjatīṁ sarūpāḥ prakṛtiṁ prajāḥ | vilokya mumuhe sadyaḥ sa iha jṇānagūhayā ||5|| evaṁ parābhidhyānena kartṛtvaṁ prakṛteḥ pumān | karmasu kriyamāṇeṣu guṇair ātmani manyate ||6|| tad asya saṁsṛtir bandhaḥ pāratantryaṁ ca tatkṛtam | bhavaty akartur īśasya sākṣiṇo nirvṛtātmanaḥ ||7|| kāryakāraṇakartṛtve kāraṇaṁ prakṛtiṁ viduḥ | bhoktṛtve sukhaduḥkhānāṁ puruṣaṁ prakṛteḥ param ||8||

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O Ensinamento de Kapila


Agora, descreverei para ti a conformação dos elementos (tattva) em detalhes. O ser (puruṣa), ao reconhecer isso, há de libertar-se. Explicarei para ti o conhecimento que dizem que rompe os nós do coração, que revela a essência (ātman) do ser (puruṣa) e que conduz ao supremo. A essência incriada é o ser, livre de qualidades (guṇa) e superior à materialidade (prakṛti). O mundo todo é conduzido por ele, que está dentro de tudo, com luminosidade própria. O onipresente (vibhu) aproximou-se ludicamente da materialidade sutil, divina e dotada de qualidades, que o recebeu casualmente. Ele, ao vislumbrar a materialidade geratriz, iludiu-se imediatamente com as qualidades (guṇa), tendo sua sabedoria velada, passando a existir como as inúmeras formas de criaturas neste mundo. Dessa forma, o ser (pumān), desejando seu outro, atribui a si mesmo a qualidade de agente, que pertence à materialidade, enquanto decorrem as ações das qualidades. Por isso, ele, que é inativo, potente, perceptivo e auto-suficiente, dota-se da criação, restrição, dependência e objetividade. Entende-se a materialidade como o princípio no âmbito do agente, da causa e da ação; e entende-se o ser, que é diferente da materialidade, como o princípio no estado de apreciação, relativo ao prazer e à dor.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Encontro do dia 24 de julho de 2009 (cakra e mātṛkā)

Eis um texto tão simples quanto representativo da visão tântrica relativa à corporalidade humana. Simples em sua construção e objetividade, porém complexo nos pressupostos do ritual meditativo que preceitua. Dois conhecimentos fundamentais para o praticante de yoga estão presentes nessa prática: cakra e mātṛkā. Os dois, segundo o tantrismo, são interdependentes; cakra é ponto de conexão entre duas expressões diferentes da śakti, as quais costumamos chamar de micro e macro-cosmo. A śakti manifesta-se no macro como toda variedade de fenômenos pertencentes ao cosmo, nos quais o corpo humano está incluído como micro-categoria privilegiada. A mātṛkā é a śakti do ponto de vista da pulsação sonora, organizada e desdobrada segundo o conjunto dos fonemas presentes na língua sânscrita. Isto é, a mātṛkā, sendo sonoridade condensada, é o estágio sutil que antecede toda forma de manifestação material.

A prática preceituada pelo Mahānirvāṇatantra solicita que o adepto instaure nos círculos dos cakras, entendidos geometricamente como flores de lótus com um número variável de pétalas, as várias potências sonoras da mātṛkā que totalizam o conjunto pleno do cosmo. Com isso, realiza-se o que antes era apenas latência: o corpo manifesta-se como o cosmo. Sabe-se que a consciência divina habita o cosmo e, seguindo a prática, o adepto, identifica seu próprio corpo com a totalidade desse cosmo, fazendo com que sua consciência individual integre a consciência divina.

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Mahā-nirvāṇa-tantram

dhyātvaiva mātṛkāṁ devīṁ 
ṣaṭsu cakreṣu vinyaset |
hakṣau bhrūmadhyage padme
kaṇṭhe ca ṣoḍaśa svarān || 113

hṛdambuje kādiṭhāntān 
vinyasya kulasādhakaḥ |
ḍādiphāntān nābhideśe 
bādilāntāṁś ca liṅgake ||114

mūlādhare catuṣpatre
vādisāntān pravinyaset |
ityantarmanasā nyasya
mātṛkāṇān bahir nyaset ||115
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Tantra da Cessação Grandiosa

(...) Tendo-se meditado sobre a deusa mãezinha (mātṛkā), deve-se instaurá-la nos seis círculos (cakra). No lótus do espaço entre as sobrancelhas, instaura-se o “ha” e o kṣa”. Na garganta, as dezesseis vogais. Ao instaurar do “ka” ao “ṭha” no lótus do coração, o adepto do kula instala do “ḍa” ao “pha” na região do umbigo e do “ba” ao la” no genital. Nas quatro pétalas da sustentação da base, deve estabelecer do “va” ao “sa”. Depois de instalar no interior com a mente, deve-se realizar a instauração externa. (...)

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Nota: as sequências de sons obedecem a ordem alfabética da língua sânscrita. Na condução da prática, o yogue segue, dessa forma, os sons contidos no quadro abaixo:



quarta-feira, 15 de julho de 2009

Yogues e desafios

O vídeo dispensa apresentações...

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Encontro do dia 03 de julho de 2009 (Kuṇḍalinī e Suṣumṇā)

Um aspecto importante, para não dizer fundamental, do estudo do corpo na tradição do Yoga é a Kuṇḍalinī e, por extensão, a Suṣumṇā. A primeira remete à condensação potencializada da energia pulsante que cria e sustenta o cosmo. A segunda refere-se ao canal que o iogue deve criar para que essa potência se expresse na presença de seu próprio corpo.
Mais do que um exercício físico ou físico sutil, o assim chamado "despertar da Kuṇḍalinī" envolve um profundo domínio das práticas meditativas, que, em última instância, podem ser entendidas como atos que permitem, à maneira do ritualista e seu espaço ritual, gerar, no próprio espaço corporal, a manutenção da presença divina. Entenda-se por divina a potência chamada de śakti. A śakti é a Kuṇḍalinī. E a Kuṇḍalinī é a śakti. Em sentido amplo, toda forma de manifestação material é śakti, porém, sua expressão mais profunda e integral encontra-se no pulsar da Kuṇḍalinī, que pode ser vista, sentida e experimentada no próprio corpo do adepto.
O seguinte trecho do Haṭhayoga pode ajudar a aprofundar a compreensão do tema, além, é claro, de contextualizar o sentido e a função de algumas práticas presentes no Yoga.

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A Lamparina do Haṭhayoga (Cap. 3)

Da mesma forma que o rei das serpentes sustenta a Terra, com as montanhas e as florestas, a kuṇḍalī sustenta todos os sistemas do Yoga. Quando a kuṇḍalī dormente é despertada pela graça do mestre, todos os lótus e também os nós são rompidos. Então o caminho vazio torna-se a via régia do prāṇa, a mente torna-se incondicionada e acontece a superação do Tempo. Belíssima (suṣumnā), caminho vazio (śūnyapadavī), portal de Brahman (brahmarandha), grande via (mahāpatha), crematório (śmaśāna), benfaceja (śāmbhavī), caminho do meio (madhyamārga) são todos sinônimos. Por essa razão, a técnica da mudrā deve ser praticada com todo empenho para que a īśvarī, adormecida na porta de Brahman, seja despertada. Mahāmudrā, mahābandha, mahāvedha e khecarī, uḍḍīyāna, e mūlabandha, e também o bandha chamado jālandharā, viparītakaraṇī, vajrolī, e śakticālana são o grupo das dez mudrā, que abate o morrer e o envelhecer. Este é o ensinamento transmitido pelo nātha dos primórdios, almejado por todos os siddha, que proporciona as oito realizações e é de difícil acesso até para os deuses. Como uma caixa de jóias, deve ser guardado com zelo. É algo que não deve ser divulgado, assim como o deleite com uma mulher de família.

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Haṭhayogapradīpikā

saśailavanadhātrīṇāṃ yathādhāro'hināyakaḥ |
sarveṣāṃ yogatantrāṇāṃ tathādhāro hi kuṇḍalī ||1||
suptā guruprasādena yadā jāgarti kuṇḍalī |
tadā sarvāṇi padmāni bhidyante granthayo'pi ca ||2||
prāṇasya śūnyapadavī tadā rājapathāyate |
tadā cittaṃ nirālambaṃ tadā kālasya vañcanam ||3||
suṣumṇā śūnyapadavī brahmarandhraḥ mahāpathaḥ |
śmaśānaṃ śāmbhavī madhyamārgaś cety ekavācakāḥ ||4||
tasmāt sarvaprayatnena prabodhayitum īśvarīm |
brahmadvāramukhe suptāṃ mudrābhyāsaṃ samācaret ||5||
mahāmudrā mahābandho mahāvedhaś ca khecarī |
uḍḍīyānaṃ mūlabandhaś ca bandho jālandharābhidhaḥ ||6||
karaṇī viparītākhyā vajrolī śakticālanam |
idaṃ hi mudrādaśakaṃ jarāmaraṇanāśanam ||7||
ādināthoditaṃ divyam aṣṭaiśvaryapradāyakam |
vallabhaṃ sarvasiddhānāṃ durlabhaṃ marutām api ||8||
gopanīyaṃ prayatnena yathā ratnakaraṇḍakam |
kasyacin naiva vaktavyaṃ kulastrīsurataṃ yathā ||9||